Por Israel Souza*
Como explicar o resultado dessas eleições? Para “os de cima” e para “os de baixo”, o que ele significa?
Algumas das respostas repostas mais frequentes são: compra de votos; falta de idade, “instrução” ou gratidão de uma população que, em função disso, não aquilatou a diferença entre o atual governo e os que o antecederam; os prefeitos não mobilizaram suas bases e divulgaram, adequadamente, as obras e os programas do governo etc.
Em geral, tais explicações são manufaturadas em círculos governistas. E, além de explicitar a busca de um culpado, elas mostram que, para a Frente Popular (FP), a “vitória” - marcada por um quase-empate entre Tião Viana e Tião Bocalom, de um lado, e Jorge Viana e Petecão, de outro - teve sabor de susto, vexame e derrota. Ademais, elas são bastante discutíveis.
Supervalorizam a estrutura de campanha dos candidatos da oposição, modesta se comparada à da situação. Levando-as a sério, concluiríamos que os governos da FP não produziram senão “ignorantes”, posto que, nas últimas eleições, o número de seus votos tem decrescido. E como harmonizar o aumento do número dos “menos instruídos” se, diz-se em profusão, a educação do estado tem melhorado ano a ano? A não ser que se tome como critério definidor de “instrução” a “sintonia” com as forças governistas. Quanto mais “sintonizado” com tais forças e seus projetos, mais instruído seria o cidadão. Diapasão esquisito...
Apesar disso, há quem faça um balanço positivo dessas eleições. Em sentido favorável ao governo, argumenta-se que a eleição do próximo governador e da maioria na Assembleia Legislativa Acreana e no Congresso representaria a aprovação do projeto da FP. Esse é um argumento mais realista. Mas, nem por isso, menos problemático que os outros.
Tal êxito não representa, necessariamente, uma aprovação do projeto da FP. Em verdade, é muito provável que, sem as benesses que a máquina estatal permite a quem a controla (a formação de uma ampla coalizão de partidos, o apoio ostensivo e sistemático da imprensa, a “simpatia” do empresariado e outros possíveis doadores de campanha etc.) ela tivesse perdido. Sua “vitória” representa, cabalmente, um caso em que o poder “procria”. Mais que a aprovação do projeto, ela representa a capacidade de o poder estabelecido se afirmar e impor.
Mas, se os argumentos acima são inapropriados, como, então, explicar o resultado das recentes eleições? Penso estarmos diante de um “refluxo” da “onda vermelha”.
Quando a FP chega ao Executivo estadual, os velhos caciques da política acreana vinham já bastante desgastados, incapazes de garantir na estabilidade a manutenção dos interesses das oligarquias. Os “tumultuados” governos de Edmundo Pinto (1991-1992), Romildo Magalhães (1992-1994) e Orleir Camely (1995-1998) bem expressam isso. De outro lado, o relativo equilíbrio entre “os de baixo” e “os de cima” - desdobramento dos conflitos no campo, que marcaram o estado nas décadas de 1970-1980 - acentuava a instabilidade e a falta de legitimidade dos que estavam à frente do governo.
Aquele era, portanto, um cenário marcado por certo enfraquecimento “dos de cima” e certo fortalecimento “dos de baixo”. Bem articulada no âmbito da sociedade civil e representando aos olhos dos subalternos um projeto qualitativamente diferente e superior aos outros, a “Frente” pôde avançar. Foi no recuo das ondas de outra coloração que a “onda vermelha” avançou.
A partir daí, a história nos é mais familiar. Seus pontos positivos e negativos. A construção de belas obras, e de obras estruturantes; a revitalização de monumentos históricos, de prédios estatais; o pontual pagamento do funcionalismo público; o fim do esquadrão da morte etc. Coisas boas. Seus pontos negativos também nos são conhecidos: aliança com as velhas oligarquias, subcontratação de trabalhadores; coerção sobre funcionários públicos; intolerância dirigida a dissidentes e opositores; criminalização de pequenos produtores e privatização de florestas; cerceamento à imprensa; denúncias de corrupção; desmobilização ou cooptação de sindicatos e movimentos etc. Coisas ruins.
A FP não apenas acolheu representantes da velha oligarquia em seu seio e quadros administrativos, mas também passou a lançar mão de seus projetos e estratégias de governo. Com isso, ela deixou de representar, para muitos, algo diferente e melhor do que aquilo que se tinha em décadas anteriores. A nosso ver, nisso reside a explicação para o resultado das últimas eleições: desgaste da legitimidade da FP.
Não se trata de um desgaste fruto inelutável do tempo de governo. Tal desgaste é fruto da opção de projetos e formas de governar. Certamente, ele pode estancar ou ser revertido - “brigas de ego” no seio da oposição em torno de candidaturas majoritárias, em pleitos vindouros, podem contribuir para isso. Mas não é fácil ou certo que o atual quadro sofra alterações substantivas até as próximas eleições - fissuras no bloco governista, de que já se ouve notícias, tornarão as coisas ainda mais difíceis.
Acresça-se, além do mais, o fato de o projeto ter esbarrado em seus limites. As contradições estão expostas. A inclusão ou não chegou ou foi precária. Lembremos que, nas propagandas eleitorais, Tião Viana prometia aumento do número de benefícios do Bolsa Família a uma parcela dos excluídos, enquanto ameaçava a outra com a polícia e a cadeia (“radicalização”). Diga-se de uma vez: ter a maior população carcerária do país, em termos percentuais, não representa o êxito da política de segurança, mas o fracasso das políticas de inclusão social em nosso estado.
Os efeitos disso já começam a afetar negativamente suas mais caras e estimadas lideranças. Por isso, a diminuta vantagem de Jorge Viana sobre Petecão. Por isso, diferentemente do que ocorrera no cenário nacional, o “fator Marina” foi praticamente irrelevante no cenário estadual. Se, em lugar de Tião Viana, fosse um candidato de menor expressão, a derrota seria certa.
É nesse “refluxo” da “onda vermelha” que avança a “onda azul”. É no apequenamento da legitimidade da situação que se encontra a explicação para o crescimento da oposição. Parte significativa dos votos da oposição foi, na verdade, não uma afirmação desta, mas uma rejeição daquela - e isso explica, em larga medida, a eleição de Petecão, candidato de projeto nenhum. Em certo sentido, Petecão é “nosso Tiririca”. Tanto ou mais que a afirmação de uma alternativa e a força de seu carisma, sua eleição expressa insatisfação e cansaço com o que está posto.
O elemento mais espinhoso dessas eleições é exatamente esse. Seu resultado expressa um relativo equilíbrio entre as forças de oposição e situação cujas diferenças são mais de forma que de conteúdo. Ambas intentam manter domesticados os “de baixo” através da “funcionalização da pobreza”. Ambas pretendem deixar intactos os fundamentos do domínio dos “de cima”.
Por certo, o crescimento da oposição representa o enfraquecimento do projeto da FP. Inegavelmente. Mas não representa, de modo nenhum, a construção de uma alternativa democrática e popular. Guardemo-nos das ilusões. É provável que, após quatro de governo dos que hoje compõem a oposição, haja que sinta saudade dos anos do “desenvolvimento sustentável”. Poder-se-ia configurar, dessa forma, a “alternância de poder”. Todavia, a “alternância de poder” só interessaria àqueles que se “alternassem no poder”.
E, ainda que permaneça neutra no segundo turno, nem mesmo Marina representa algo diferente nesse cenário. Sua visão ambiental é de viés liberal-capitalista. É aquela partilhada e difundida por organismos internacionais e certas ONGs e intelectuais, com pouco ou nenhum parentesco com os “subalternos”. Em âmbito estadual, consideremos seu apoio ao projeto da FP e sua embaraçosa situação de apoiar força políticas que pediam votos para Dilma; em âmbito nacional, sua atuação no Ministério do Meio Ambiente, onde com o apoio daUSAID e do Serviço Florestal Americano (USDA/FS) foi criada a Lei de (Privatização de) Florestas Públicas - 11.284/2006.
Por tudo isso, além da polarização-equilíbrio entre oposição e a situação, essas eleições deixaram patente a ausência de um projeto democrático e popular. Mas é possível fazer dessa fraqueza força.
A história mostra que em momentos assim, forças, aparentemente “fora do jogo”, de “súbito” podem aparecer e subverter a ordem das coisas. Creio que, em nosso caso, já seria grande coisa pensar e agir a partir dos seguintes elementos: 1) a luta política não se reduz a A e B; 2) A e B não representam, necessariamente e em tudo, coisas diferentes; 3) inventar ou re-inventar instâncias e formas de representação e expressão da vontade “dos de baixo” para além das figuras, partidos, governos e Estado. Ao lado disso, é preciso colocar na pauta do debate político acreano três temas de suma relevância: a reforma agrária, a dívida com credores internacionais (BM e BID) e a desprivatização da natureza.
Isso é o suficiente? Não. É fácil? Não. Mas é necessário. O rei está nu e seu castelo é de areia. Assim gritaram as urnas, e gritaram de modo insofismável e grandiloquente. É hora de uma onda democrático-popular arrebentar na praia. Ou, melhor, nos barrancos dos velhos coroneis...
* Israel Souza é Cientista Político.
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