sexta-feira, 1 de julho de 2011

HEGEMONIA EM DECLÍNIO E SUBVERSIVISMO NO GOVERNO DA FPA

por Israel Souza*

As urnas nos deram “um recadinho”, disse Jorge Viana recentemente, num comentário sobre o resultado das últimas eleições. A nosso vê, porém, as urnas mostraram algo mais sério: o declínio da hegemonia do Governo da Frente Popular do Acre (FPA).
Como se sabe, a FPA chega ao poder estatal quando, por força do acirramento dos conflitos sociais, os representantes políticos das oligarquias já não podiam assegurar a manutenção de seus interesses. Os “conturbados” governos de Edmundo Pinto (1991-1992), Romildo Magalhães (1992-1994) e Orleir Camely (1995-1998) davam claros sinais disso.
À testa das forças progressistas que foram gestadas durante os “anos de chumbo”, eleição após eleição, o PT foi crescendo e se consolidando como um grande partido. Bem articulado no âmbito da “sociedade civil” (grêmios estudantis, associação de moradores, sindicatos, ONGs, CEBs etc.), chegou, enfim, ao governo estadual liderando a FPA. Dessa forma, ele pôde aliar a influência que exercia sobre a “sociedade civil” com o poder estatal recém-conquistado. Contudo, contrariando a esperança daqueles anos, ele opta por fazer o que as antigas forças políticas, sozinhas, não podiam fazer. Garantiu a manutenção dos interesses das oligarquias - e de capitais estrangeiros - em condições favoráveis.  
Fundamental foi a influência sobre a “sociedade civil”. Dela, o governo estimulou e cooptou vários setores. Os recalcitrantes foram isolados ou submetidos a um contínuo e ostensivo patrulhamento. Durante alguns anos, as forças governistas foram relativamente bem-sucedidas nesta empresa. É bem verdade que nunca suplantaram as resistências, nem poderiam, mas também nunca passaram susto ou aperto. Nesse sentido, o atual quadro político traz algumas novidades.     
Em dias recentes, vimos o paralelismo de protestos e reivindicações na saúde, na segurança e na educação, áreas vitais das políticas de governo e que envolvem amplos segmentos do funcionalismo público. Tais mobilizações se somam a outras, como a dos movimentos do interior do estado. Estes envolvem a luta dos índios (não-apadrinhados do governo) pela demarcação de suas terras e por saúde; a luta de seringueiros e campesinos pelo apoio à produção e pela suspensão dos famigerados projetos de manejo.
Por certo, essas manifestações não são de hoje. Todavia, elas estão se tornando cada vez mais comuns e intensas. Ousamos afirmar que estamos em face de ensaios de outra “cultura política” em nosso estado. Mobilizações e protestos não apenas sem o PT, mas contra o PT. Ou, mais precisamente, contra os interesses e projetos que hoje ele encarna no governo.  
É prematuro dizer se isso vai vingar e em que direção vai seguir. Afinal, trata-se de um rico e diverso conjunto de movimentos cuja “radicalidade” ou “moderação” varia caso a caso. Movimentos fragmentados, pouco articulados e sem coloração ideológica precisa. Daí a opção por chamá-lo “subversivismo”, expressão colhida em Gramsci e usada a nosso modo. Importa destacar, no entanto, que ele emerge na cena histórica com certa força, expressando e se alimentando do declínio da hegemonia da FPA. Coisas de antropofagia política. A força de uns se alimenta da fraqueza de outros.
O surgimento de canais de comunicação alternativos (sobretudo, blogs) faz parte e dá sustentação e visibilidade a esse subversivismo. Embora simples, são meios com significativa influência na sociedade. Chegam mesmo a pautar os meios de comunicação convencionais, apesar do autoritarismo governamental e do servilismo da imprensa.
A força de que hoje gozam esses meios é outra expressão daquele declínio. As pessoas que deles se servem são, em geral, formadoras de opinião. Procuram neles as notícias que a imprensa convencional não divulga. Buscam espaços para emitir opiniões e fazer denúncias.
“Uma mentira dita muitas vezes se transforma em verdade”? Sim. Mas somente onde e quando a realidade não grita, a plenos pulmões, coisa em contrário. Por isso o descrédito dos meios de comunicação convencionais no estado e, conseguintemente, a justificação cada vez mais limitada que podem dar ao governo. A quem ainda convencem as pesquisas que o governo divulga de si mesmo? Bem sabem da realidade aqueles que usam transporte coletivo, que recorrem à saúde pública, que precisam de segurança etc.     
Isso não seria supervalorizar o cenário atual? Não. O que estamos fazendo é apontar para o que subjaz a ele. Um exemplo para ilustrar.
Dê o governo um aumento salarial aos militares. Não precisa ser os 117% de reposição que eles reclamam. Que seja algo modesto, desde que eles o entendam como uma vitória substantiva. Feito isso, e os militares voltam às ruas, para vigiar os movimentos com que se aliançaram e para garantir a manutenção da ordem.
O mesmo vale para os demais segmentos do funcionalismo público. Ganham aumento, e já voltam à rotina e ao corporativismo de sempre. A atuação do sindicato da educação é exemplar a esse respeito. Faz greves, como de direito, e prejudica o ano letivo. Ganha algum e volta às aulas. Mas é incapaz de apoiar efetivamente a luta dos alunos pela diminuição do preço da passagem de ônibus, preferindo agir de acordo com os ditames do governo. 
Dentre outras coisas, é isso que faz com que os movimentos do interior tenham uma luta potencialmente mais emancipatória que a destes grupos. Todavia, é mister ressaltar que, em luta, tais grupos desnudam e afrontam o despotismo estatal. Em suas manifestações, da dos militares à dos estudantes, é possível ver, ao lado das reivindicações pontuais e específicas, críticas mais gerais. Estas dizem respeito à corrupção, ao autoritarismo, à privatização e à devastação da floresta, para citar apenas algumas.
A visão que manifestam sobre essas coisas não cessará com a paralisação dos protestos. E, se a estes se seguir um silêncio, isso não se traduzirá em apoio ao governo. No caso dos militares, por mais que o governo assuma uma postura humilde e generosa, a oposição continuará por força da liderança do deputado estadual que representa a categoria, ainda que em outra escala e sob outras formas. Permanecendo as coisas como estão, não há motivos para duvidar que os militares sigam sua liderança no apoio às forças oposicionistas.       
A difícil relação com a Assembleia e com o Judiciário pode significar mais problemas ainda. Grosso modo, na Assembleia, o governo conta hoje com uma bancada que não inspira confiança, bancada ruim de tribuna. O presidente do Tribunal de Justiça (desembargador Adair Longuini) disse recentemente que o Executivo não contaria com o Judiciário “ajoelhado nas escadarias do Palácio do Governo”. Nada de mais, é verdade. Mas também nada de menos.
Mais que qualquer um de seus companheiros e antecessores, Tião Viana está enredado em dificuldades. Tanto em relação às estruturas estatais quanto em relação à “sociedade civil”. No intuito de reverter o resultado desfavorável das últimas eleições e garantir uma vitória na capital ano que vem, ele faz um governo do tipo pragmático: o resultado é o que importa. E a coerção é a ferramenta mais à mão nesse momento. Tragicamente para ele, o uso de tal recurso tem por efeito deixar a dominação ainda mais explícita e intolerável, o que pode inflamar ainda mais o subversivismo.
Outro fator pesa negativamente na balança: a incógnita em torno do nome de quem concorrerá à prefeitura na capital ano que vem. Tendo crescido à sombra de três figuras, a FPA não viu surgir nenhuma liderança expressiva em seu seio nos últimos anos. Ademais, o debilitamento delas (das três figuras) nas últimas eleições mostra que já vai longe o tempo em que conseguiam eleger candidatos inexpressivos até para o Senado.  
Por tudo isso, sustentamos que o resultado das últimas eleições expressou uma insatisfação difusa na sociedade - presente inclusive entre certos setores dominantes descontentes com a política ambiental do governo - e que hoje alimenta o subversivismo aqui apontado. Alguns o atribuem à oposição, desconsiderando que a antiga direita não tem espírito para tanto. Em verdade, é o cansaço que cede lugar à indignação combativa.  
Destarte, tal subversivismo representa o declínio da legitimidade política da FPA, ainda que um declínio relativo, isto é, reversível. E talvez represente o crepúsculo de um domínio que já conta mais de uma década. Como dito em texto anterior (Eleições 2010: um olhar a partir “dos de baixo”), o perigo é a antiga direita - que tanto ou mais que o subversivismo tem crescido com o apequenamento da legitimidade da FPA - chegar ao poder estatal como salvação para os problemas que, sabemos, não serão resolvidos “por cima”.
A falar a verdade, não cremos que Jorge Viana ache mesmo que o resultado das últimas eleições seja apenas um “recadinho das urnas”. Acreditamos que, como sempre, apenas quis aparecer de moço bom e humilde. Se ele realmente crê nisso, tanto melhor para as forças que lutam por mudanças. A poesia diz o mais.

Aurora

Ferido pelos homens,
O tempo - antes tão sábio e paciente,
Tão impávido a seguir seu rumo e ritmo -
Anda instável e demente.
Ultimamente, escurece em hora qualquer.
O calendário caducou,
Seguido pelos relógios de pulso,
De parede e biológico.

Parece aproximar-se o crepúsculo.
Em tempos assim, aos que, ansiosos,
Aguardamos a aurora, não convém
Apenas encantar-se com o
Balé das chamas.
Ou simplesmente ter o fogo ao pé de si,
De modo a aquecer-se em seu calor fraternal.
Importa deitar lenha à fogueira.
Vigiemos. E venha o que vier.

* Israel Souza é Cientista Político e Mestre em Desenvolvimento Regional

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